Elio Gaspari, O Globo
A “Agenda Brasil” de Renan Calheiros, Dilma Roussef e Joaquim Levy é uma xepa de feira. Seu objetivo é iludir a boa fé do público e alimentar a má fé de maganos que circulam por trás das cortinas do poder. Na segunda-feira tinha 27 itens, na quarta eram 43. Pelo menos dezenove tratam de assuntos que já tramitam no Congresso. Uma das oito novidades apresentadas na primeira versão era o maior jabuti dos tempos modernos. Propunha “avaliar a possibilidade de cobrança diferenciada de procedimentos do SUS (…), considerando as faixas do Imposto de Renda”. Dias depois, o bicho sumiu. Como jabuti não sobe em árvore, resta saber quem o pôs lá. Pode ter sido um maluco ou, quem sabe, alguém preocupado com a possibilidade de hoje haver pouca gente na rua gritando contra o governo e o Congresso.
Na quarta-feira trocaram o jabuti por uma girafa. Agora, a Agenda Brasil propõe “regulamentar o ressarcimento pelos associados dos planos de saúde, dos procedimentos e atendimentos realizados pelo SUS”. Essa frase só tem um significado, absurdo. Não são os associados que devem ressarcir o SUS, são as operadoras. Se ao final das contas uma parte desse custo vai para os clientes, é outra história. Os associados dos planos são clientes, não são sócios dos bilionários dos planos. Se fossem sócios, teriam recebido algum dinheiro quando a Amil foi vendida por US$ 4,9 bilhões à United Health.
Arma-se uma situação na qual um sujeito tem plano de saúde, paga suas mensalidades e, por algum motivo, é atendido na rede pública. Como Renan, Dilma e Levy querem que seja regulamentado o ressarcimento “pelos associados”, o que está escrito indica é que a patuleia pagará tudo, três vezes. A primeira, quando seus impostos financiam o SUS. A segunda, quando ele financia a operadora do seu plano. A terceira quando seria obrigada a ressarcir a rede pública por ter ido a ela. Bastava que tivessem escrito “ressarcimento, pelos planos de saúde”. Mesmo com essa mudança teriam produzido uma redundância, pois o assunto já está regulado. O artigo 32 da Lei 9.656 não menciona “associados”, mas “operadoras”.
No coração dessa história está a palavra “ressarcimento”, contra a qual os barões das operadoras lutam desde o século passado. Eles não querem ressarcir o SUS quando um de seus fregueses é atendido (ou desovado) na rede pública. Em 1998 o Congresso aprovou a lei que instituiu essa cobrança. Na tramitação, ela foi desossada. Pelo que está em vigor, se um cidadão tem um acidente automobilístico, sofre um traumatismo craniano, é levado para um pronto-socorro público e passa pela cirurgia que lhe salva a vida, o plano de saúde nada devolve ao SUS. Já o hospital cinco estrelas, para onde ele é removido dias depois, cobra do plano até o copo d’água. A Viúva fica com 80% dos custos hospitalares e não recebe um ceitil. (Dois detalhes: as equipes de resgate são obrigadas a levar os acidentados para hospitais públicos. Ademais, é só lá que certamente haverá neurocirurgiões de plantão.)
Além de desossada, a lei do ressarcimento é comida por dentro. Numa frente as operadoras judicializaram-na, sustentando que é inconstitucional. Noutra, beneficiadas por anos de inoperância da Agência Nacional de Saúde Suplementar, remancham os pagamentos. Nos primeiros sete anos de vigência da lei, pagaram apenas R$ 70 milhões. Entre 2000 e 2009, a ANS cobrou R$ 310 milhões relativos a internações e só recebeu R$ 110 milhões. Pior: entre 2007 e 2009, ela conseguiu ter uma arrecadação declinante. No ano passado esse número melhorou, chegando-se a arrecadar R$ 393 milhões só com internações.
Se Renan e Dilma quiserem arrecadar mais, podem se alistar publicamente na aplicação rigorosa da atual lei do ressarcimento e na elaboração de um novo projeto que lhe restaure a ossatura. Nenhum dos dois é freguês do SUS. Renan está coberto pelo plano de saúde do Senado. No ano passado, ele custou R$ 6,2 milhões. É vitalício, garante os dependentes e cobre qualquer cidadão que tenha sentado na cadeira por 180 dias. Já a doutora Dilma, quando precisa, tem o hospital Sírio Libanês.
Elio Gaspari é jornalista