A geopolítica chega ao cinema, e vestindo cor-de-rosa: a Barbie fora do Vietnã

João Alfredo Lopes Nyegray*

Diz o ditado que quem tem limite é município, cartão de crédito ou mesmo o sinal 4G. Sem limites, por outro lado, são o fisco brasileiro, o meu amor pela esposa e pelos alunos, e a pretensão chinesa sobre os mares. Ainda que países buscando controle geográfico de algum lugar não seja lá uma pauta nova, a China se supera: para Pequim, o controle sobre várias ilhas, recifes, e sobre o que é a Zona Econômica Exclusiva de Vietnã, Malásia, Filipinas, Taiwan e Brunei é inquestionavelmente seu. 

Desde a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar, celebrada na Jamaica em 1982, reconheceu-se que os países costeiros têm direito a declarar como sua Zona Econômica Exclusiva (ZEE) o espaço marítimo de 200 milhas náuticas – algo como 370 quilômetros – a partir da linha de baixa de sua maré. Da mesma forma, o Estado costeiro pode explorar os recursos do mar e subsolo oceânico da ZEE, preservando o meio marítimo ou mesmo instalando ilhas artificiais. 

Ao que parece, a China não estava copiada neste e-mail – e aí iniciam-se as disputas no chamado “Mar do Sul da China”. É uma série de conflitos territoriais envolvendo várias nações asiáticas em relação a ilhas, recifes e áreas marítimas nessa região tão estrategicamente importante. Rica em recursos naturais como petróleo e gás, e uma rota crucial para o comércio internacional, a China simplesmente não abre mão do domínio de toda a região.

Sendo os principais protagonistas nessa disputa, os chineses reivindicam quase todo o Mar do Sul da China, traçando uma linha conhecida como “Linha de Nove Traços” ou “Linha de U-Shaped” que abrange cerca de 90% da região. A reivindicação chinesa engloba a ZEE do Vietnã, Malásia, Filipinas, Taiwan e Brunei – que obviamente não aceitam bem o pleito de Pequim. Uma decisão de 2016 da Corte Permanente de Arbitragem (CPA) de Haia, nos Países Baixos, concluiu corretamente que a China não tem direito algum sobre a região.  

E, adivinha quem deslizou suavemente – de vestido, casa e carro cor-de-rosa, ao som de Dua Lipa – sobre essa multinacional treta asiática? Ela mesma. A própria Barbie. Num dos trechos do longa-metragem de Greta Gerwig (a diretora; a ativista é a Greta Thunberg) aparece um mapa que supostamente apoiaria a pretensão chinesa sobre as águas daquela região. O referido mapa inclui a “Linha de Nove Traços” em forma de “U”, muito usada por chineses para reforçar suas pretensões, o que por certo inclui as ZEEs vietnamitas, malaias, filipinas, taiwanesas e bruneínas. Foi o que bastou para que as autoridades do Vietnã proibissem o filme, acusando-o de trazer uma imagem ofensiva ao país. 

Esse não é o primeiro – e certamente não será o último – filme proibido por Hanói. A animação “Abominável” e o filme “Uncharted: fora do mapa” tiveram o mesmo destino que agora se abate sobre a Barbie. Há quem diga que as reações de uma nação sobre cinema e literatura não passam de censura barata, mas a questão é que há muitas outras camadas envolvendo Geopolítica e Relações Internacionais sobre essas reações. 

Da mesma forma que as guerras não são apenas armadas, mas também retóricas, as disputas geopolíticas frequentemente têm uma dimensão simbólica e cultural, em que falas, filmes, músicas e outros elementos culturais são usados como ferramentas para apoiar – ainda que de forma sutil como um mapa em um frame de filme – os pleitos dos países envolvidos numa dada controvérsia. Cabe aqui o questionamento: seria o mapa utilizado no filme da Barbie um aceno da Mattel aos 1,4 bilhão de consumidores chineses, em detrimento dos 97,5 milhões de vietnamitas, 114 milhões de filipinos, 33,4 milhões de malaios, 23,6 milhões de taiwaneses ou 445 mil bruneínos? Não parece haver uma resposta clara por hora.

Como já vimos ocorrer incontáveis vezes, muitos países utilizam a cultura para fortalecer a identidade nacional e promover um senso de unidade entre seus cidadãos – seja essa unidade mais ou menos frágil. Aqui, filmes, músicas e símbolos culturais costumam ser empregados para destacar o patrimônio histórico e imaterial de uma nação, reforçando uma narrativa de legitimidade sobre determinadas áreas em disputa.

Igualmente, filmes, séries de TV, músicas e outros elementos culturais podem ser usados para moldar a percepção pública e a opinião internacional a favor das reivindicações desta ou daquela nação. Somados, esses fatores nos ajudam a entender as reações a alguns filmes, músicas ou livros. O Vietnã apenas proibiu o filme da Barbie. Em 2014, a Coreia do Norte fez pior, e ameaçou iniciar uma guerra – o que não é lá grande novidade no comportamento norte-coreano – caso um filme fosse lançado. A comédia “A entrevista”, de 2014, parodiava o regime de Pyongyang e trazia dois jornalistas que tinham um plano de assassinar o ditador Kim Jon-un – que supostamente se enfureceu ao saber da trama.

Uma vez que filmes, séries, músicas e elementos culturais podem ser utilizados para moldar a percepção pública a favor ou contra uma causa, deixo aqui uma sugestão à Mattel: se há Barbie veterinária, Barbie sereia, Barbie bailarina… por que não uma Barbie internacionalista ou cartógrafa? Minhas alunas iriam AMAR.

*João Alfredo Lopes Nyegray é doutor e mestre em Internacionalização e Estratégia. Especialista em Negócios Internacionais. Advogado, graduado em Relações Internacionais. Coordenador do curso de Comércio Exterior na Universidade Positivo (UP). Instagram: @janyegray

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