Vladimir, memória e Cine Memória – Pedro Lacerda*

Há poucos dias antes de se internar, eu, Damata e o mestre marcamos de nos encontrar,

perto da casa dele, para almoçarmos, por ali onde ele morava. Vladimir, era um cabra

que dirigiu muitos filmes, mas que em toda vida se recusou a dirigir um carro, por isso

sempre perguntava ao Damata: – O Pedro Lacerda vai passar aqui? O Damata

confirmava.

Engraçado, minha falecida mãe se chamava Maria, mas era conhecida como “Maria

gasolina”, o Vladimir também era “um gasolina”. Ele e minha mãe não resistiam a um

carro parando na porta, convidando para ir a algum lugar. Qualquer lugar… ambos

pulavam dentro do carro. No caso da minha mãe, a distância pouco importava, mesmo

já tendo ela superado, em muito, os 80 anos de vida.

Me lembro que, neste almoço, combinamos de marcar uma data para visitarmos o

Ronaldo Duque, em Olhos D’água, e depois irmos até Barreiras, na Bahia, cidade natal

do Damata, só pra passar uns dias na estrada, rindo e falando da vida alheia.

Pois bem, neste dia modorrento do mês de setembro\2024, nós três almoçamos, ali na

104 Sul, ouvindo o Damata falar de filmes dos anos 60, 70 e 80 e o Vladimir, sorridente,

perguntando o nome dos velhos atores e diretores. O Damata de tanto exibir esses

filmes, acabou por decorar o nome de todo mundo.

Eu, sentado ali, meio à parte da conversa, nada dizia. Decidi que era melhor apenas

ouvir. Quando tive coragem, e coragem mesmo, para interferir na conversa, perguntei ao

chefe como andava a situação da Cinememória.

Péssimo momento para interferir. Minha pergunta intempestiva quase tirou a fome do

mestre. Não exatamente pela irritação, mas pela decepção e preocupação, pois sabia ele

que, com a sua morte, não teria quem cuidasse do acervo da Fundação Cinememória,

uma paixão que ele cuidou, ao longo de muitos anos, como se fora uma filha amada. E

agora?

O tempo voa ligeiro e alguns poucos sabem das brigas que comprei, e comprei caro, em

defesa da Cinememória. Certa feita, cheguei até a bater boca, em público, com os ex-

secretário de cultura, o Sr. Bartolomeu, sobre a preservação do acervo, bate-boca este

que causou desconforto ao longânime cineasta, que me pediu para esquecer o assunto.

Mas como esquecer?

A sede da Fundação Cinememória era local de encontro dos cineastas candangos, ponto

de resistência, de debates e de construção de novos rumos. Uma espécie de “aparelho”.

Era lá que fazíamos nossos debates e confraternizações anuais, com queijos, vinhos e

cachaça. O mestre amava reunir as pessoas.

Vladimir representou, em vida, o verdadeiro amor pelas pessoas e pelo cinema. Era um

obstinado, um tarado pelo cinema e pela memória do cinema.

Entretanto, tudo que Vladimir Carvalho construiu, ao longo de todos esses anos, e

mantém na Fundação Cinememória, corre o risco de virar pó, pois nenhuma instituição

local se dignou, ainda, a receber o acervo valiosíssimo reunido pelo cineasta, nesse meio

século de dedicação.

A sede da Fundação Cine Memória, na W3 Sul, guarda preciosíssima coleção de livros,

filmes, equipamentos, cadeiras históricas, fotos, recortes, documentos. Há uma moviola

onde Glauber Rocha montou o clássico Deus e o diabo na terra do sol.

Recentemente, a Fundação recebeu a doação de um projetor 35mm, da Embaixada da

França. Há tanto garimpo importante ali, que nem vou me dar ao trabalho de enumerá-

lo, porque matérias jornalísticas já foram feitas, inclusive recentemente, celebrando o

valor do acervo e denunciando o descaso das “autoridades”.

Amigos de entidades do Rio de Janeiro e São Paulo e alhures já se ofereceram para

levar embora e cuidar do acervo. Mas o desejo do mestre era que o acervo permanecesse

aqui em Brasília. Falta compreensão da importância histórica. O Brasil é recorrente em

não se importar e insistir em negar sua história.

Vladimir trouxe da Bahia a criação da extinta Associação Nacional de documentarista –

ABD Nacional, no início dos anos 80. De lá pra cá, foi padrinho, patrono, patrocinador

e até financiador de ideias para sustentação do cinema e audiovisual candangos.

Vladimir é o pai de tudo isso. No cinema candango o mestre Vladimir representa um

incansável da Ceilândia, um dos candangos fixos na Praça dos Três Poderes, um pilar

fincado na rocha, a torre que queria subir ao céu. Vladimir é um Taj Mahal, a Grande

Muralha da China.

Mestre Vlado, por aqui, aguardamos, ansiosos, o seu próximo documentário sobre o

Paraíso, a sua nova morada. Amém.

Finalmente, eu já vi mulher virar homem, homem virar mulher e até lobisomem. Agora

nós cineastas estamos na torcida para o Vladimir virar sala de cinema. CINE

BRASÍLIA VLADIMIR CARVALHO. É o que almejamos.

“Vladimir morreu. Mas será que o Vladimir morre?”

*Pedro Lacerda é cineasta

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