Governo do Amazonas não quer indenizar inocente que foi preso e pegou HIV ao ser estuprado em presídio
O Amazonas voltou a ser noticia em rede nacional, na noite de ontem (16/02). O Programa Reporter Record Investigação, da Rede Record, contou a triste historia de um amazonense injustiçado por falhas em ações do Estado.
Nenhum valor será suficiente para reverter a falha cometida pelo Estado do Amazonas contra o amazonense Heberson Lima de Oliveira, 32. Ex-presidiário e soro-positivo, Heberson adquiriu o vírus HIV após ser violentado e estuprado por detentos de um presídio de Manaus, onde ficou preso injustamente por quase três anos por um crime que nunca cometeu: estuprar uma menina de 9 anos.
Mesmo sem nenhuma prova material ou testemunhal que o incriminasse, foi indiciado, denunciado e transferido para a Unidade Prisional do Puraquequara (UPP). Só dois anos e sete meses depois de ter sido preso é que Heberson foi julgado e, finalmente, considerado inocente.
Mas a sentença que o pôs em liberdade não foi suficiente para lhe fazer um homem completamente livre. Heberson foi estuprado pelos “xerifes” da cadeia e contraiu o vírus da AIDS.
– Eu fui violentado lá dentro. Na hora do desespero, não vi quantos eram. Só queria que aquele sofrimento acabasse. Agora, essa doença vai me acompanhar pelo resto da vida. Eu estou condenado à morte. A Justiça roubou minha vida – desabafa tentando disfarçar o constrangimento evidente no queixo tremido.
De 2003 a 2006, Heberson viveu um inferno dentro da Unidade Prisional do Puraquequara, na Zona Leste da capital, onde sofreu a “tradicional” punição aplicada à maioria dos acusados de estupro dentro sistema penitenciário amazonense: a violência sexual brutal. Secretaria de Justiça, Polícia Civil, Ministério Público e Tribunal de Justiça erraram e deram as costas para Heberson, vítima da letargia do poder público.
O amazonense nunca recebeu ajuda e só a partir de setembro de 2013, sete anos após a liberdade, que passou a pedir na Justiça uma indenização de R$ 170.856 aos filhos, por danos materiais e morais. O valor, calculado com base em salários mínimos pelo tempo que Heberson ficou preso, sem possibilidade de trabalhar e afastado dos filhos, foi contestado pela Procuradoria Geral do Estado do Amazonas, na 3ª Vara da Fazenda Pública Estadual. O Governo considera a quantia alta demais.
Atualmente, Heberson vive com a mãe no bairro Compensa, na Zona Oeste da cidade, em uma casa de condições precárias. Ele pretende voltar aos estudos e arranjar um emprego nesse semestre. Mensalmente, Heberson comparece à Fundação de Medicina Tropical (FMT), em Manaus, para consulta médica no tratamento contra a Aids, e também passou a tomar remédios em casa – a FMT é um dos únicos hospitais no Amazonas responsável pelo tratamento da Aids.
No Tropical, Heberson recebe apoio psicológico. Além disso, ele também é atendido por psicóloga voluntária duas vezes por semana em um consultório odontológico próximo à sua casa na Compensa. Ex-usuário de drogas, vício que o acometeu durante a prisão e também fora da cadeia, Heberson está firme sem consumir entorpecentes com o apoio e pressão da mãe, amigos, voluntários e do pastor de uma igreja evangélica que frequenta.
Comovido com a injustiça do Estado, o professor universitário da área de Direitos Humanos João Batista do Nascimento movimenta pessoas nas mídias sociais para garantir benefícios e assistência a Heberson, bem como encontrar propostas de emprego para ele. Com a ajuda de colaboradores, Nascimento pretende escrever o livro “Justiça que mata: caso Heberson Oliveira”. Segundo ele, toda renda arrecadada com a publicação será transferida para Heberson.
“O Heberson foi vítima de um erro praticado em cadeia. O sistema como um todo errou. Temos informações de que houve erros na parte de investigação policial. Isso vai ser esmiuçado no livro. Vou contar os erros na esfera policial e na esfera judicial. Não sei se poderemos responsabilizar alguém, porque para isso teria que comprovar que essas autoridades agiram de má-fé. Isso não tem como comprovar. Mas posso afirmar que o Estado errou. E se errou, ele tem que pagar”, diz.
Com apenas uma aposentadoria, a mãe de Heberson é quem sustenta a casa onde vivem, com ajuda de doações. Advogados voluntários estão preparando uma petição para buscar na Justiça uma pensão vitalícia a Heberson, ainda sem valor, ou mesmo uma casa em programas habitacionais. “O Estado acabou com a vida desse homem. E se negar a pagar chega a ser desumano. Quero rogar ao governador que pague essa indenização, mas que faça mais que isso”, declarou o professor.
Logo após a liberdade, Heberson chegou a trabalhar em uma loja de material de construção, mas não aguentou o preconceito. Ele tentou se suicidar algumas vezes. “Ele quer trabalhar, mas as pessoas não dão emprego para quem é aidético. Por isso que o Estado tem que pagar uma pensão e dar uma casa para ele”, ressaltou o professor.
Fora da prisão, Heberson não recebeu assistência do poder público. “O Estado não presta assistência ao preso lá dentro, sob a custódia dele. Imagine depois. Existem milhares de Hebersons espalhados pelo País inteiro. A quantidade de presos inocentes ou pelo menos presos após trabalhos mal feitos por parte do Estado faz com que tenhamos um sistema prisional extremamente cruel”, alertou Nascimento. O registro fotográfico mais recente de Heberson é durante a ceia de Natal com a família.
O suposto estupro da menina de 9 anos ocorreu em 2003 no bairro Nova Floresta, Zona Leste. Segundo a defensora pública que comprovou a inocência de Heberson, Ilmair Siqueira, as características físicas do estuprador e as de Heberson divergiam muito. “Esse é um dos elementos que me faz acreditar que houve um grave erro da Polícia Civil. Heberson alega que havia uma rixa entre ele e o pai da menina e que ele teria sido acusado por conta dessa desavença”, afirma o professor Nascimento.
Um relatório contando o que aconteceu com Heberson foi enviado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (OEA) e à Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, ainda sem resposta. O caso de Heberson foi divulgado pela primeira vez em 2011, durante a série de reportagens “Vidas Roubadas” do Jornal A CRÍTICA. Blogs e sites até hoje repercutem essa história de injustiça.
Após passar um tempo no tratamento psicológico e a conclusão dos ensinos Fundamental e Médio em um Centro Educacional de Jovens e Adultos (CEJA), Heberson poderá receber uma bolsa de estudos para cursar Direito em uma universidade. “Queremos que seja feita justiça social a Heberson e que um pouco de dignidade seja dada a ele”, finaliza o professor.
Fonte: Jornal A Critica