STF decidiu, por unanimidade, que a regra da fidelidade partidária não se aplica a candidatos eleitos pelo sistema majoritário
Barroso: “A perda do mandato em razão de mudança de partido não se aplica aos candidatos eleitos pelo sistema majoritário”
Na última quarta-feira, 27.5, no julgamento da ADI 5.081, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por unanimidade, que a regra da fidelidade partidária não se aplica a candidatos eleitos pelo sistema majoritário.
Os ministros acompanharam o voto do relator (leia aqui a íntegra), o ministro Luís Roberto Barroso, que assentou a seguinte tese: “A perda do mandato em razão de mudança de partido não se aplica aos candidatos eleitos pelo sistema majoritário, sob pena de violação da soberania popular e das escolhas feitas pelo eleitor”.
Confira a seguir o trecho final do voto do ministro Luís Roberto Barroso:
V. Inaplicabilidade da fidelidade partidária às eleições majoritárias.
30. Convém esclarecer, preliminarmente, que não há, na Constituição de 1988, qualquer previsão expressa da “regra da fidelidade partidária”. A Constituição de 1969 previa a infidelidade partidária como hipótese explícita de perda do mandato de deputados e senadores (art. 35, V). A Carta de 1988, contudo, não reproduziu a sanção, que de resto já havia sido suprimida do texto anterior pelo art. 8º da Emenda Constitucional nº 25/1985.
31. Ademais, as propostas formuladas no sentido da introdução de disposição deste teor na Constituição até o presente momento não foram aprovadas.[1] Além disso, o STF tradicionalmente considera que o artigo 55 contém rol taxativo de hipóteses de perda do mandato parlamentar, e, como se sabe, nele não se encontra a troca de partido por parlamentar. Não foi por outra razão que o STF entendia inexistir, na hipótese, fundamento para a perda do mandato, e assim o ocupante de mandato eletivo o mantinha mesmo após a migração partidária (v. as citadas decisões nos MS 20.2927, Rel. Min. Moreira Alves; MS 23.405, Rel. Min. Gilmar Mendes).
32. O que se quer destacar é que a afirmação da “regra da fidelidade partidária”, à míngua de previsão constitucional explícita, deve decorrer de maneira clara e inequívoca da Constituição. No sistema proporcional há fundamento constitucional consistente para a sua construção jurisprudencial; porém, no sistema majoritário não há. É o que se procura demonstrar a seguir.
33. Como já assinalado, um dos mais complexos problemas do sistema proporcional brasileiro é a extensão do fenômeno da transferência de votos. A Secretaria Geral da Mesa da Câmara dos Deputados noticiou, em 7.10.2014, que apenas 36 (trinta e seis) dos 513 (quinhentos e treze) deputados eleitos para a legislatura em curso (2015/2018) atingiram votação igual ou superior ao quociente eleitoral. Assim, apenas 7% (sete por cento) dos deputados federais brasileiros foram eleitos com votos próprios, sendo que nenhum o foi nos Estados do Acre, Alagoas, Amapá, Espirito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Piauí, Rio Grande do Norte, Roraima, Rio Grande do Sul, Tocantins e no Distrito Federal. Logo, nada menos que 93% (noventa e três por cento) da composição da Câmara dos Deputados deve o seu mandato à transferência dos votos dados ao seu partido ou aos seus correligionários.
34. Este modelo produz relevantes distorções. Na última eleição, o Estado de São Paulo forneceu um bom exemplo do que aqui se vem de afirmar: diante da votação extraordinária obtida por Celso Russomano (1,52 milhão de votos), candidatos do seu partido (PRB) foram eleitos com votações baixas no Estado mais populoso do país, como se deu com Fausto Binato, que obteve apenas 22 (vinte e dois) mil votos. Na mesma eleição, candidatos muito mais votados não se elegeram, como foi o caso de Antônio Carlos Mendes Thame, do PSDB, que obteve 106,6 mil votos. O sistema permite, portanto, que um candidato com 20 mil votos derrote outro com 100 mil.
35. A situação torna-se ainda mais grave com a admissão das coligações partidárias, muitas das quais são firmadas por motivos mais ligados à estratégia eleitoral do que à afinidade ideológica das agremiações que a integram. Cláudio Pereira de Souza Neto traz interessante exemplo[2]: a coligação entre o PT e o PRB nas últimas eleições em Minas Gerais. Embora o primeiro partido tenha em seus quadros candidatos que desfraldam bandeiras feministas, o segundo conta com muitos membros conservadores, havendo claros antagonismos entre eles em questões morais, como, e.g., a descriminalização do aborto. Entretanto, diante do massivo processo de transferência que aqui se vem noticiando, o voto dado a um progressista ajudará a eleger um conservador, e vice-versa.
36. Como se vê, a possibilidade de coligações eleitorais, aliada à dimensão adquirida pelo fenômeno da transferência de votos impede que o sistema proporcional cumpra satisfatoriamente a sua função precípua: dar às diferentes ideologias representação parlamentar proporcional à sua acolhida no tecido social, tornando o Parlamento um espelho da sociedade. Havendo volumosa transferência de votos, e notadamente entre candidatos que se situam em pontos tão distintos do espectro político, o sistema entra em curto-circuito e se distancia do princípio da proporcionalidade da representação da Câmara dos Deputados (art. 45, caput, da CF/88) e da soberania popular (art. 1, § único, da CF/88).
37. Tais problemas eram sensivelmente agravados pelas numerosas migrações partidárias. Com efeito, se no momento da divulgação do resultado das eleições a proporcionalidade entre a pluralidade ideológica existente na sociedade e a sua representação parlamentar já se encontrava debilitada pelas extensas transferências de voto e pelo esvaziamento da dimensão programática dos partidos, que dirá se, em seguida, se instalar prática – igualmente abrangente – de migrações partidárias? Pois era exatamente isso que ocorria antes das corretas decisões proferidas pelo STF nos Mandados de Segurança nº 26.602, nº 26.603 e nº 26.604. De acordo com os já mencionados dados, ocorreram, entre os anos de 1995 a 2007, nada menos que 810 (oitocentos e dez) casos de mudança de partido.
38. Este cenário representava clara deturpação da vontade política do eleitor, pois o amplo êxodo partidário alterava a divisão de forças estabelecida ao final das eleições, tendendo a inflar os partidos integrantes da base aliada em detrimento dos de oposição. É absolutamente incoerente que determinado parlamentar seja eleito em razão dos votos dados à legenda ou a um correligionário com votação extraordinária e, durante seu mandato (muitas vezes logo no seu início), migre para outro partido que em nada colaborou para a sua eleição. A infidelidade partidária, principalmente na proporção assumida no Brasil, representava completo desvirtuamento do sistema proporcional, da democracia representativa e da soberania popular. Portanto, veio em boa hora a alteração da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, pois a regra da fidelidade partidária busca corrigir graves problemas do sistema.
39. O mesmo não ocorre no sistema majoritário. Neste, como a fórmula eleitoral é a regra da maioria e não a do quociente eleitoral, o candidato eleito será o mais bem votado. Como serão desconsiderados os votos dados aos candidatos derrotados, não se coloca o fenômeno da transferência de votos. Assim, no sistema majoritário a “regra da fidelidade partidária” não consiste em medida necessária à preservação da vontade do eleitor, como ocorre no sistema proporcional, e, portanto, não se trata de corolário natural do princípio da soberania popular (arts. 1º, parágrafo único e 14, caput, da Constituição).
40. Muito pelo contrário. No sistema majoritário atualmente aplicado no Brasil, a imposição de perda do mandato por infidelidade partidária se antagoniza como a soberania popular, que, como se sabe, integra o núcleo essencial do princípio democrático. Um simples exemplo ajuda a esclarecer a afirmação. Imagine-se que um candidato eleito para cargo de Senador, por qualquer motivo, troque de partido durante o mandato. Ao se aplicar a Resolução nº 22.610/2007, nos termos atualmente dispostos, a consequência da migração seria a perda do mandato. Em consequência, o suplente assumiria o cargo eletivo, conforme determina a redação atual do art. 10, da Resolução. Ocorre que o suplente, muitas vezes, sequer é conhecido do eleitor e não recebeu qualquer voto na eleição. A vontade política expressa no momento da eleição acaba por ser claramente violada, agravando-se o problema da débil legitimidade democrática dos suplentes de Senador no Brasil.
41. Ademais, se o objetivo da fidelidade partidária é devolver o mandato ao partido político que o conquistou através do voto, a aplicação da perda de mandato ainda menos se justifica para o cargo de Chefe do Poder Executivo. Isso porque não há obrigatoriedade de que titular e vice sejam do mesmo partido. Aliás, não é raro que, por conta das coligações partidárias, os componentes da chapa sejam de distintas agremiações partidárias. Nesses casos, a perda de mandato favoreceria candidato e partido que não receberam votos, em detrimento de candidato que obteve, no mínimo, a maioria absoluta dos votos colhidos no pleito. Assim, a substituição de candidato respaldado por ampla legitimidade democrática por vice carente de votos, claramente se descola do princípio da soberania popular e, como regra, não protegerá o partido prejudicado com a migração do Chefe do Executivo eleito pelo povo.
42. Por fim, cumpre verificar se a alegada centralidade dos partidos políticos na democracia brasileira, decorrente da necessária filiação partidária, do emprego de recursos do Fundo Partidário e de tempo de propaganda em rádio e televisão etc., constitui motivo suficiente para estender a regra da fidelidade partidária ao sistema majoritário. A resposta é negativa. Com efeito, o vínculo entre partido e mandato é muito mais tênue no sistema majoritário do que no proporcional, não apenas pela inexistência de transferência de votos, mas pela circunstância de a votação se centrar muito mais na figura do candidato do que na do partido[3]. Com efeito, nos pleitos majoritários os eleitores votam em candidatos e não em partidos, o que é reconhecido pela própria Constituição Federal ao prever, em seu artigo 77, § 2º, que “será considerado eleito Presidente o candidato que, registrado por partido político, obtiver a maioria absoluta de votos (…)”.
43. Não se pretende negar o relevantíssimo papel reservado aos partidos políticos nas democracias representativas modernas[4]. Porém, não parece certo afirmar que o constituinte de 1988 haja instituído uma “democracia de partidos”. Com efeito, o art. 1º, parágrafo único da Constituição é inequívoco ao estabelecer a soberania popular como fonte última de legitimação de todos os poderes públicos, ao proclamar que “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”.
44. Se a soberania popular integra o núcleo essencial do princípio democrático, não se afigura legítimo estender, por construção jurisprudencial, a regra da fidelidade partidária ao sistema majoritário, por implicar desvirtuamento da vontade popular vocalizada nas eleições, como antes se expôs. Tal medida, sob a justificativa de contribuir para o fortalecimento dos partidos brasileiros, além de não ser necessariamente idônea a esse fim, viola a soberania popular, ao retirar os mandatos de candidatos escolhidos legitimamente por votação majoritária dos eleitores. Se o objetivo perseguido é o aperfeiçoamento da democracia representativa e do modelo eleitoral brasileiro, a extensão da fidelidade partidária ao sistema majoritário subverte esse propósito, agravando o problema sob o pretexto de saná-lo.
45. Em suma, entendo que os arts. 10 e 13 da Resolução nº 22.610/2007, ao igualarem os sistemas proporcional e majoritário para fins de fidelidade partidária, violam as características essenciais dos sistemas eleitorais dispostos na Constituição, extrapolam indevidamente os fundamentos das decisões proferidas por esta Corte nos Mandados de Segurança nº 26.602, nº 26.603 e nº 26.604 e, sobretudo, afrontam a soberania popular.
VI. Conclusão
46. Diante do exposto, julgo procedente o pedido para declarar inconstitucional o termo “ou vice”, constante do art. 10 da Resolução nº 22.610/2007, e a expressão “e, após 16 (dezesseis) de outubro corrente, quanto a eleitos pelo sistema majoritário”, constante do art. 13. Por fim, confiro interpretação conforme a Constituição ao termo “suplente”, constante do art. 10, com a finalidade de excluir do seu alcance os cargos do sistema majoritário. A tese que embasa o meu voto é a seguinte: “A perda do mandato em razão de mudança de partido não se aplica aos candidatos eleitos pelo sistema majoritário, sob pena de violação da soberania popular e das escolhas feitas pelo eleitor”.
É como voto.
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Foto: Nelson Jr./SCO/STF.
Notas:
[1] Cite-se, por exemplo, as Propostas de Emenda Constitucional n. 85/1995, 90/1995, 137/1995, 251/1995, 542/1995, 24/1999, 27/1999, 143/1999, 242/2000, 4/2007 e 182/2007, que pretendem modificar os arts. 17 e 55, da Constituição.
[2] SOUZA NETO, Cláudio Pereira. Transparência e opacidade do sistema eleitoral: subsídios para a reforma política democrática. Coluna “Constituição e Sociedade” do site Jota. Acesso em 29 de abril de 2015.
[3] Tal fato não passou despercebido ao meu eminente antecessor, Ministro Carlos Ayres Britto, que proferiu o voto condutor na Consulta 1.407/2007. De fato, apesar de haver votado pela extensão da perda de mandato ao sistema majoritário, reconheceu ele que “nesse tipo de competição federal homem-a-homem, candidato versus candidato, o prestígio individual tende a suplantar o partidário”.
[4] Partidos políticos são entidades que fazem a conexão entre a sociedade civil e o Estado. Consoante clássica definição do Professor José Afonso da Silva, consistem em “forma de agremiação de um grupo social que se propõe organizar, coordenar e instrumentar a vontade popular com o fim de assumir o poder para realizar seu programa de governo”. V. José Afonso da Silva, Curso de Direito Constitucional Positivo, 2003, p. 393.
Fonte: Blog Os Constitucionalistas